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" Espelho meu, existe alguém como eu?

 

Que imagens andamos a passar para as nossas crianças? dei por mim a questionar-me sobre isso sem ter uma criança minha para educar. não sou mãe, nem tenho planos de ser tão cedo, mas "bateu-me" isto quando uma amiga me disse que a filha lhe disse que " queria ser mais branca" como a princesa do "Frozen".

Isso deixou-me perturbada porque a pequena "Any" é uma criança linda inteligente.  

Aquela mãe me pareceu perdida,"não tive resposta para ela"  respondeu-me. "Disse-lhe que para mim ela é a princesa mais bonita do mundo".

          Também não tive uma resposta para  esta mãe, mas achei que deveria trazer esta assunto para as mãe que por aqui passam. Como lidar com  estas inseguranças que as crianças vão desenvolvendo ao longo do seu crescimento? Não vos darei as respostas a estes problemas, mas sim a forma como eles são formados.

         As crianças têm tendência a imitar  os adultos, numa primeira fase apercebo que procuram imitar o que os pais fazem. Depois do resultado da socialização com outras crianças imitam-se uns aos outros. Nesta fase de formação a imagem que têm diante de si é o principal modelo.  

             Quando era pequena costumava passar muito tempo no salão de uma amiga da minha mãe, em são Tomé e príncipe. Vivia rodeada de mulheres vaidosas, preocupadas com a imagem, principalmente com o cabelo, um cabelo extremamente liso. "Mona lisa mais lisa" brincavam as clientes quando terminavam de aplicar o tratamento com TCB (produto de alisamento capilar), eu ficava fascinada com aquelas mulheres e a determinada altura já não suportava o meu cabelo Crespo, por isso quando a Tina quis alisar o meu cabelo aos 5 anos fiquei eufórica e saltei para o banco. Não tinha tamanho para estar sentada num banco daqueles, mas meia dúzia de livros resolveu o problema e em questão de horas eu era uma “mini mona lisa mais lisa”. O meu ódio pela minha imagem começou cedo demais e piorou ainda mais quando vim para Portugal. Andava frustrada e lutava constantemente conta o cabelo armado, irritavam-me os filmes da Disney e a brincadeira de escolher uma princesa da Disney para me mascarar no Carnaval . Acabava por ir mascarada de empregada ou de bailarina do “ É o Tcham” (banda brasileira). Eram as imagens de negras que mais via, a empregada nas telenovelas e a bailarina nas cassetes com os vídeos musicais da banda. Nada de princesas ou heroínas, todas elas com o cabelo liso.

A primeira mossa na auto-estima começou lá no princípio. Com o passar dos anos estes problemas foram cimentados com mais episódios: a Barbie que não era parecida comigo, mais actividades de Carnaval em que não podia usar a fantasia de princesa porque “ não existem princesas iguais a ti”, ia me contentando com a “bruxa”, mais “empregadas” e “palhaças”. O Carnaval passou a ser chato.

Quando perguntava a minha mãe porque não existia ninguém igual a mim, ela respondia que eu era a “ única e mais linda para ela”, mas e para o resto do mundo também serei linda? O espelho respondia-me que não. Bonitas eram as que apareciam na TV, nas revistas, as que eram magras e tinham traços finos. Tanta “mossa lataria” levou a que num belo dia eu acreditasse que estava fora da forma e que ficar magra era algo fundamental para ser melhor (e eu não era gorda, era apenas mais musculada por causa da pratica de natação). Comecei por reduzir na comida e provocar vómitos quando não conseguia cumprir os objectivos, depois comia fruta e num caso extremo não comia. Ninguém reparava no que andava a fazer, foram anos a repetir estes hábitos até que não tinha mais volta e o corpo entrou em colapso.

Recuperado desta “mossa” criei outra, mais uma vez por causa da imagem do meu corpo. “Tens uns ombros muito largos para uma rapariga, pareces um rapaz”, ouvi isso de alguém que eu amava muito, e mais uma vez comecei a criar hábitos de auto repressão. Cobria o corpo com roupas escuras e cedia a pressão para ser mais discreta com a roupa.

        Televisão, revistas, novelas e noções de beleza impostas pela sociedade ditaram e construíram a minha imagem durante anos. Em momento algum sentia que alguém era igual a mim, em momento algum tinha alguém em quem me inspirar. Faltava-me a representatividade, precisava ver alguém que se sentisse bem sendo negra, crespa, de ombros largos, musculosos, lábios grossos.

Aceitei a minha imagem a relativamente pouco tempo: deixei o cabelo ficar natural, voltei a deixar o sol tocar nos ombros e comecei a ouvir Rita Lee. A faculdade foi como um transplante de córnea para mim. Numa questão de meses redescobri a minha história e encontrei um espelho que me mostrou uma rainha Ginja, uma Tereza de Benguela, uma Janelle Monae, uma Issa Era com a sua série “inseguranças”, Melina Matsoukas, Yara Shahidi, Viola Davis e Tiraji P. Henson. Mulheres que entraram pela minha televisão e me mostraram exemplos de mulheres fortes, complexas intensas, uma verdadeira força da natureza, mulheres que de alguma forma eram iguais a mim, mas diferente. Eu já era crescida mas dizia para mim “ quando crescer quero ser igual a ela”. Ainda vou crescer mais e vou ser igual aquelas mulheres.

       Reconstruir a imagem da mulher negra, começando por dar as nossas meninas imagens nas quais elas possam se inspirar, é o primeiro passo. Mostrar que negras também são heroínas, princesas, mostrando que elas são o que elas quiserem ser, sendo crespa, cacheadas ou lisas. Uma reprodução consciente e responsável dos negros na midea, uma representação livre de estereótipos e preconceitos, para que da próxima vez que perguntarem ao espelho: “espelho meu, existe alguém como eu?”, ele responda,“és tu a única e a mais bela das mulheres que tu quiseres ser”.

                                                                                                     

                                                                                                            Soraya Évora

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